quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Miguel (Segunda Parte)

Miguel era bonito. Muito bonito. Alto, cabelos pretos, lisos e cheios, de uma pele extremamente alva. Um rosto de menino e um olhar louco. Seus braços eram fortes, mas tinha uma força suave. Sem a barba seu queixo delicado ficava à mostra e aquele furinho que todas gostam estava em evidência. A caminho do centro da cidade ele percebeu olhares, muitos olhares. E percebeu também que passara a vida sem olhar para os lados. Sempre cabisbaixo, nunca se prendeu por mais de alguns instantes em alguém que tivera por ele passado.

Chegando à estação de trem, notou um grupo de garotas conversando. Falavam e riam alto, gesticulavam e faziam com que os passantes as percebessem a qualquer custo. As mulheres olhavam estranhamente – algumas com desprezo, outras, despeito. Os homens fixavam os olhos e alguns até se viravam para continuar olhando. Todas bonitas, novas, cheias de vitalidade. E todas com roupas curtas, justas, vulgares – segundo alguns olhares femininos. Deliciosas, de acordo com os masculinos.
Na fila para comprar o bilhete ele percebeu que elas o olhavam. Duas comentaram algo em voz baixa e umas delas sorriu para ele. Era muito atraente: loira, cabelos compridos e um corpo perfeito. Sentiu-se atraído por ela, e retribuiu o sorriso. As outras perceberam e reiniciaram o seu escandaloso comportamento, que tinha cessado por alguns instantes.
Baixou novamente a cabeça, passou a catraca e seguiu para a plataforma. As garotas logo ali estavam também e a loira linda não tirava os olhos dele e não parava de cochichar com a amiga. Miguel passou a se sentir incomodado. Era uma situação constrangedora. Elas não disfarçavam e a loira praticamente rebolava em plena plataforma. Jogava os cabelos, mordia os lábios. Ele achou engraçada a forma como a menina se insinuava. Parecia mais que queria mostrar para as amigas que conseguia chamar sua atenção do que propriamente pretendia isso. Ele riu, mas não pra ela dessa vez. Pensou que passara muito tempo trancafiado em seu quarto e tinha perdido o jeito. Aliás, não se lembrava de já ter tido jeito pra isso. As garotas com quem tinha tido algo eram da escola, ou conhecidas. Sempre rolava em alguma festa ou reunião com os amigos. Tudo muito superficial. Não se lembrava de ter tido que convencer alguma mulher a ficar com ele. Acontecia, simplesmente. Mas sempre tinha alguma conversa, no mínimo, interessante antes. Nunca aconteceu de sair e ter de conhecer alguém. Sexo casual com uma desconhecida. Beijo com uma desconhecida. Não. Não se lembrava de ter feito isso.
Acabou se dispersando. Esqueceu da loira, esqueceu de onde estava e se perguntava quando ia aparecer alguém que realmente interessasse a ponto de fazê-lo trocar as pinturas de cores acinzentadas pelas avermelhadas, alaranjadas. Quando sentiria o ímpeto de trocar as árvores secas por crepúsculos e silhuetas na praia.
“Nossa, que pensamento mais brega. Vou acabar ilustrando cartões. Será que ainda existem esses cartões?”
Sem perceber, Miguel sorria novamente. De cabeça baixa, pensando na besteira que acabara de imaginar. O trem estacionou na plataforma e ele passou pela porta ainda sorrindo, quando ouviu alguém dizer “Ele é tímido! Que fofo!”.
Tímido. Era disperso, antissocial. Logo perdera o interesse pela moça que quase se jogava nele, apesar daqueles seios incríveis. Muito barulho por nada pensou ele.
Sentou-se em um banco na janela, e procurou nos bolsos seu mp3. Havia esquecido e imaginou como conseguiria seguir quase por uma hora ouvindo aquelas garotas cacarejando o caminho todo. Lembrou-se de ter dito pra mãe que tentaria ser simpático, mas simpatia tinha limite. Se pudesse fazê-las calar somente com um olhar... E lá estava ele olhando novamente para a loira. Desviou e olhou para a janela, vendo a paisagem começar a correr diante de seus olhos e lembrou-se da amiga que dizia que a lei da inércia era a única coisa sobre física que ela se lembrava. E seguia. Nada melhor do que atender à tendência que um corpo tem de permanecer em um lugar. Ela era engraçada, soltava umas frases sarcásticas quando menos se esperava. Ele era um dos poucos que riam sempre, um dos poucos que a entendiam.
Ouviu algum chiado, quando pensava na amiga e se deu conta de que alguém sentado à sua frente não tinha se esquecido de vir acompanhado de música. Alguém ali tinha a sorte de não ouvir toda aquela gritaria daquela turma de meninas. Tentou reconhecer a música, em vão. Olhou para baixo e viu dois pés afastados e dois joelhos juntos. Uma saia que começava verde e ia passando por um dégradé até ficar bege. Os joelhos à mostra e um pouquinho mais acima. Pouco o suficiente para fazê-lo imaginar a saia subindo e revelando suas coxas, que apoiavam um livro também não reconhecido, como a música que ela ouvia. Subindo um pouco mais o olhar, viu a camiseta regata branca e os seios pequenos. Estava longe de ter os seios da loira, mas que colo! Dali via que era macio e sentiu vontade de tocá-lo. Sua boca era suculenta e seus olhos interessados. Interessados no que estava lendo, não nele. Mexeu-se, pigarreou, tossiu. E os olhos não se levantaram. Continuaram fixos na leitura. A luz do sol entrou pela janela e ele descobriu ali o vermelho que imaginava retratar. Era o vermelho perfeito, preso naqueles cabelos.
Alguém se sentou ao seu lado e lhe pediu permissão para lhe fazer uma pergunta. Sem se desviar do vermelho, respondeu que sim.
- Posso saber em que você está pensando? Deixou de prestar atenção em mim e gostaria de saber o que se passa nessa sua cabeça - disse a loira, quase esquecida.
- Não, eu não me incomodo – respondeu Miguel.
- Ahnn? Não se incomoda com o que?
- Não me incomodo em responder à sua pergunta.
- Mas eu não perguntei se se incomodava. Só fiz a pergunta.
- Claro que não! Não me perguntou se eu me incomodaria por sentar-se ao meu lado, nem perguntou se eu me incomodaria em responder algo a uma desconhecida. Só perguntou, sem nem saber quem eu sou, o que tinha aqui dentro – disse Miguel, apontado para a própria cabeça. E eu repondo: há cores aqui dentro. Sobretudo o vermelho. Sobretudo, ainda, as nuances do vermelho com a luz do sol, sem a luz do sol. Fico imaginando como seria esse vermelho à meia luz, ou à luz de velas. Ou como seria esse vermelho acompanhado de umas taças de vinhos e uma boa música. O vermelho sem o bege nem o verde, nem o branco.
A leitora à sua frente nem se mexeu, mas levantou o olhar, finalmente. Olhou-o meio de lado, esboçou um sorriso de quem tinha entendido o que ele dizia e voltou ao seu livro.
- Respondida a sua pergunta? – Voltou-se Miguel para a moça do lado.
- Não como eu queria. Mas pelo menos agora sei que não deixou de olhar pra mim por estar pensando em outra. Ficaria com ciúmes se fosse isso.
Então ela riu. Sem som, mas riu. Por algum motivo havia tirado seus fones e ouviu a conversa. E não pode se conter quando ouviu o final dela. Miguel esqueceu-se novamente da loira e voltou a olhar pra frente, esperando que ela o encarasse, mas não aconteceu. Ela olhava pela janela, como se estivesse alheia a ele e ele sabia que não estava. Ainda havia uma pontinha do seu divertimento pela estupidez da outra estampada no canto se sua boca. O celular dela tocou e o sorriso desvaneceu. Miguel tentou ouvir a conversa sem ser notado. Ela disse em qual estação desceria e para onde ia. Combinou com a outra pessoa de se encontrarem em um bar numa avenida conhecida. Ele pensou em segui-la, mas logo desistiu da ideia. E se esqueceu pra onde estava indo.
O trem parou na estação final e ela se levantou. Ele continuou ali sentado, sem pressa, olhando as pessoas descerem. Quando se levantou, percebeu algo deixado no banco. Era o livro. Ela o havia esquecido. Ele o recolheu e saiu apressado atrás dela, mas ela já tinha sumido. Ficou parado, na plataforma da estação, pensando em como devolver e se lembrou de onde ela estaria.
[...]

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Velhos hábitos

Não jogo nada fora. O que não uso, separo, levo pra um quartinho lá no fundo e ali deixo... Eternamente.



Se, por um acaso precisar de algo que ali deixei, vou lá pegar e trago novamente pro meu quarto. Isso se alguém já não tenha me feito o favor de ter jogado por mim. Aí confirmo que o 'eternamente' não existe mesmo.
É assim com revistas, papéis, enfeites... 
Os livros e a meia dúzia de discos de vinil continuam firmes no quarto. Mesmo não tendo mais a "vitrola" há tempos, os discos ficam! 
Já me desfiz de muita coisa sem querer assim. Sempre aparece alguém disposto a fazer uma faxina onde não deve e vai lá mexer no meu armário de memórias. Poxa, já não é suficiente a idade que vai chegando e levando muito do que vivi pra não sei onde, ainda tenho que aguentar alguém levando as provas cabais de já ter vivido? 
Trocava cartas (isso mesmo, cartas - aquelas enviadas pelo correio, com selo colado e carimbado e tudo mais) com um amigo que morava longe. Demorava dias pra bendita chegar lá e outros tantos pra resposta chegar de volta. Hoje nos comunicamos por telefone, msn... Muito mais fácil. Quatorze anos e não perdemos contato. Cartas, nunca mais. Mas aquelas me eram muito valiosas.
Eu fazia rascunho. Eram folhas e folhas de caderno rascunhando, até chegar na carta perfeita. Ele não fazia. 
Escrevia o que se passava e, se errasse, rabiscava por cima e consertava ali mesmo. Meninos são mais relaxados. Mas a saudade e o sentimento eram os mesmos pros dois.
Como eu queria ter ainda aquelas cartas. E alguém as jogou fora. Juntamente com as lembranças que ganhei quando fiz o Encontro de Jovens e com minha revistinha de cifras de violão das músicas da igreja (eu tocava no Encontro) e do Legião também. E meu violão sumiu! Acho que emprestei e quebraram.
Bem, as cartas foram lá pro fundo por engano. Devia tê-las guardado junto com os discos. Dentro do guarda roupas. Meus livros saíram do guarda roupas e foram para uma prateleira. E agora surgiu uma goteira sobre eles. 
Não podia simplesmente gotejar em minha testa? Tem que ser neles?
Essa semana resolvi que eu mesma faria a faxina lá no fundo. Tinha muitos livros lá também. Apostilas da faculdade, apostilas que montei pro trabalho... Separei o que não mais usaria pra dar um fim. Voltei alguns livros pro meu quarto, outros levei pra biblioteca da escola. Os papéis sem mais utilidade eu separei pra reciclagem. E, no meio da bagunça, achei uma agenda de 2001.
Época de transição. Terminando um relacionamento e querendo começar outro. Achei engraçado eu ter anotado o que acontecia ali: as tentativas de afastamento de um e os investimentos no outro! Essa agenda eu tinha dado pro então namorado, que precisava muito de uma pois era músico, viajava muito e tinha muitos compromissos. E sempre me deixava sozinha. Como fosse tão desorganizado quanto eu, comprei-lhe a agenda.
Aconteceu que ele queria uma eletrônica! Dei a eletrônica e fiquei com a primeira. Eu a tinha adorado! Tinha estrelas na capa e, dentro, várias curiosidades e pequenos poemas.
Que ironia: a agenda que era pra ser dele tinha ali todos os  relatos sobre meu descontentamento por ele e meu tesão irrestrito pelo outro!
Como tudo começou, como tudo acabou, ali. Hoje nos cumprimentamos quando nos encontramos, trocamos algumas polidas palavras. Ele até passou aqui em casa certa vez e parou pra bater papo. Fazia anos que a gente não se falava. Acho que ele queria mesmo era mostrar o carro novo e deixar claro que estava bem. Fiquei feliz por ele e, enquanto contávamos nossas vidas uma para o outro, eu me perguntava porque tinha ficado com tanta raiva do moço naquela época. Tanta que não podia nem olhar pra cara dele. O cara era tão legal, ão simpatico...
Lembrei-me o por quê quando encontrei  a agenda. Ele me impediu de ser feliz. E enquanto não me conformei com o fato de que não poderia ficar com o outro, sentia raiva dele. O outro arrumou outra. Casou, teve filhos. Está bem e feliz. O primeiro também: casou, teve filho e está bem e feliz.
Eu não me casei, nem tive filhos. Mas também estou bem e feliz. 
Na agenda tem tudo registrado: principalmente nossa última briga, que aconteceu porque ele não queria me deixar fazer o curso de teatro. Eu perdi o curso, ele perdeu a namorada; e a primeira vez que fiquei com o outro. Aconteceu exatamente nessa ordem: o fim do namoro veio primeiro. Não fui desleal. Meu erro foi não ter esperado um pouco. Sempre fui impulsiva e nunca passei vontades. Tem ali também as outras poucas vezes em que fiquei com o outro. Infelizmente poucas. Mas melhores que os dois anos passados antes dele. E me lembrei de tudo por causa da agenda que nem era pra ser minha.
A agenda que era pra ser dele me fez lembrar do outro. O quadro do Robert Smith que ele me deu e que ainda está aqui pendurado no meu quarto ainda me faz lembrar do outro. O 'The Top" que ele me deu porque sabia que eu considerava o melhor disco do Cure também me faz lembrar o outro.
Todos os presentes que ele me deu tinham algo a ver com o Cure, e me faziam (e fazem) pensar em outro.
E só agora, dez anos depois, eu percebi isso.
A culpa foi dele por eu ter desejado tanto o outro. Toda dele!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Só pra constar

Tem coisas que eu penso, escrevo e guardo numa pasta com senha!


Como já disse uma vez: as melhores novidades são impublicáveis. 
Um dia eu faço um blog 'fake'. Crio um pseudônimo e coragem e chuto o balde!
 Ah! letargia que tarda em me abordar...

Ruínas

Não sei se tento escrever um conto, ou se faço como habitualmente e escrevo como forma de desabafo. Esse eu não estou escrevendo no Word. Só fiz isso uma vez. Normalmente já escrevo diretamente aqui. Mas o que quero relatar não aconteceu comigo e tenho dúvidas quanto ao tipo de texto.
Tomando cuidado para não revelar a verdadeira história, nem os verdadeiros envolvidos, tentarei deixar aqui minhas impressões.
Sou uma incrédula em relação à tudo (ou quase). Não acredito em promessas. Não acredito em felicidade eterna e linear - como nas histórias que ouvimos de pessoas que encontraram um grande amor e foram felizes para sempre... Porém, toda vez que ouço que esse "felizes para sempre" falhou, me sinto mal. E me sinto mal por perceber, mais uma vez, que eu estava certa em ser tão cética.
Essas histórias parecem com aquelas de contos de fadas que sempre terminam no casamento: introdução - desenvolvimento - complicação - climax - conclusão.
É assim mesmo: no começo, conhecemos as personagens e o que cada uma faz, conta-se alguns fatos marcantes, depois algum problema enfrentado. Então vem o ápice do problema, o herói e como este acabou com o empecilho e o final feliz.  
Mas e depois, o que acontece? O conto acabou, mas e a vida?
Tudo fica bem eternamente? Você encontra alguém legal, resolve passar o resto de sua vida com esse alguém, passa por algumas dificuldades, luta, tudo se resolve e depois tudo fica tranquilo? 
A vida se transforma: o que antes era casa dos pais vira nossa casa. O que antes eram meras briguinhas com os irmãos vira preocupação com a educação dos filhos, com a administração da casa, com o jantar do marido.
Quem antes se ocupava de si passa a se ocupar do outro. E a vida passa. 
Todos os dias igual: acordar, tomar café, cuidar dos outros, trabalhar e, se sobrar tempo, cuidar de si. Se sobrar tempo.
Há quem diga que felicidade é isso. Irl evando até encontrar alguém e construir uma vida a partir daí.
A vida já construída até então é deixada pra trás. 
E um dia o que os dois construiram juntos desmorona. Do nada, sem motivo aparente. 
Então percebe-se que o cabelo que estava crescendo nao era vaidade. Era descuido. E o peso perdido era a tristeza fazendo efeito. E a vida que você deixou pra trás não vai voltar e que você não poderá refazer seu caminho. Não podera fazer novas escolhas que tornariam a história diferente. 
O ressentimento toma conta do seu peito e você se arrepende por tanta dedicação. Se corrói por não ter se dado a devida atenção e por não saber onde falhou. 
Tudo parecia tão perfeito... O que será que você fez de errado?
Quando nos dispomos a dividir nossa vida temos de saber, desde o começo, que pode não dar certo. Não é questão de pessimismo, mas de visão. E, se não der certo, temos de saber que todos temos uma parcela de culpa. Mas isso não pode servir de motivo de auto martírio.
Por pior que seja  final da história, devemos lembrar que por um tempo foi bom. Pelo tempo suficiente foi realmente perfeito e esses momentos renderam ótimos frutos. Sempre temos algo gratificante, nem que seja uma coisinha ínfima, pra nos mostrar que não fizemos em vão.
Só nos resta seguir. Dar as costas às ruinas e começar uma nova construção. E viver!

Força!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Declaração

Eu, Sonia Altheman, declaro, para os devidos fins...

Que sinto muito sua falta, seu moleque!
Sinto falta das nossas conversas, do seu sorriso e do seu olhar safado.
Sinto falta do chato do Dostoievski que só tinha graça quando era citado na sua voz.
Sinto falta da bagunça que a gente fazia junto, das doideiras que você aprontava, das piadas que me faziam rir, e das que eu contava e só você entendia.
Sinto falta do video que eu tive que apagar, das fotos que eu tive que dar um sumiço. Da musiquinha que eu ouvia quando sentia saudade.
"Everybody needs somebody, I need you" (but you don't need me).
Confesso tudo isso. Com muito custo. A despeito de todo meu orgulho e de toda minha arrogância.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

De uns tempos pra cá

Minha janela está sempre aberta
às vezes me escondo por medo
às vezes me escancaro
e mostro mais do que devo.

Quando a abro encontro a lua
e também muitas estrelas ;
Encontro risos e choros,
mistérios e confidências...
Jogo conversa fora com algum vizinho
Ou me jogo por ela a um desconhecido
Depende de quem passa,
depende do que se passa.
Sempre através dela algo é vivido.
Só o vento que não mais bate
e me deixa apreensiva.
E é em busca desse sopro
que encerro suas folhas.
E me arranco noite afora,
e mergulho madrugada adentro
e vou até de encontro à aurora
e não te encontro, querido vento.
Que é meu ar, meu chão, minha água,
e sobretudo meu fogo.
Corro, assim, de volta à minha janela
morada da minha espera
pois soprastes através dela
pela primeira vez.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Miguel

Ele colou um adesivo de nicotina em suas costas. Adesivo comprado mais ou menos há oito meses. Usou dois na ocasião, além dos chicletes, também de nicotina, que mascava enquanto fumava um cigarro atrás do outro.

Era tão determinado que plano nenhum de mudar sua vida atrapalhava seus antigos hábitos. Por mais que pensasse, todo dia, da hora que levantava até quando tentava dormir, que acordaria cedo, tomaria um café da manhã digno, iria para a academia, organizaria suas tralhas, jogaria fora roupas velhas que não lhe serviam mais, enfim, se livraria de tudo que o incomodava, nunca tinha resultado. Sempre seguia a mesma rotina: levantava, lavava seu rosto, escovava seus os dentes, pegava um pouco de café já morno e voltava pro quarto. Acendia um cigarro, dava dois tragos, ligava seu computador, desligava, pegava alguma tela, largava... E assim seguia seu dia.
Eram assim todos os dias. Sentia vontade de ter um trabalho comum, assim poderia ter mais do que reclamar além dele mesmo. Um trabalho como de um operário em alguma empresa, ou funcionário de alguma repartição pública. Mas entre o tédio de uma vidar normal e o tédio de uma alma sem inspiração, ele preferia seu próprio ócio.
Seu descontentamento era claro. Porém, não suportava a idéia de ter de conviver com pessoas que não o viam com bons olhos. Não era sociável, não gostava de jogar conversa fora. Só interagia com quem se parecesse com ele e esse tipo de pessoa é raro.
Não saia na rua. Só quando era extremamente necessário (pra comprar cigarros, por exemplo). Não gostava de sua vizinhança nem da luz do dia. Vivia entocado, com seus livros sempre deixados de lado pela metade, seu cinzeiro cheio, sua TV ligada o tempo todo, mas que nunca tinha sua atenção.
Nada o interessava, não prendia sua atenção por muito tempo em ninguém, em nenhum assunto. Nem as tragédias que estavam acontecendo ultimamente, nem a vida de alguém que tinha sido salva, nada.
Sentia-se só, por vezes, e era nessas horas que gostaria de mudar. Pensava que se parasse de fumar mudaria de vida.
Se não fumasse, em vez de voltar pro quarto, tomaria seu café. Não suportava comer de manhã. Aliás, só se lembrava de comer quando estava completamente tonto de fome. Isso ocorria lá pelas onze da noite. Durante o dia, como não se mexia, não sentia necessidade. Só café e cigarros. O dia todo. Isso o incomodava, mas esse era um momento raro e efêmero.
Dessa vez estava decidido a mudar. Sempre pensava que no outro dia faria diferente, e nunca fazia. Mas naquela noite havia colado seu adesivo às suas costas. Estava resolvido. Apagou seu último cigarro, desligou a TV, apagou as luzes e se deitou para tentar dormir.
Sempre tivera um sono conturbado. Durante o dia, não pensava em nada importante. Estava sempre pulando de um afazer a outro. Começava uma tela, e logo a deixava de lado. Começava um livro qualquer com todo entusiasmo e, quando chegava à décima página, percebia que estivera em outro lugar a partir da segunda. Tentava se concentrar novamente, procurando ali alguma fonte de inspiração para retornar à tela, mas não conseguia. Tentava outras atividades, sempre inacabadas. E assim seguia seu dia.
Só à noite, quando apagava as luzes e deitava em sua cama, que começava a pensar em mais um dia desperdiçado. E nos dias que viriam e em como faria para não mais deixar sua vida escorrer entre seus dedos. Isso atrapalhava seu sono, e nessa noite, em especial, Morpheu se recusava veementemente em visitá-lo.
Revirava-se na cama e não sentia paz. Talvez fosse efeito do adesivo, deixando-o elétrico. Talvez fosse a ansiedade por saber que se obrigaria, de toda forma, a ter um dia diferente quando a noite terminasse.
II
Sábado. Abriu a janela de seu quarto e percebeu que fazia um dia bonito. Quanto tempo fazia que não prestava atenção a um dia claro? Não gostava do sol nem se importava se ele aparecia ou não. Mas nesse dia o sol seria de grande ajuda. Seria mais fácil sair de casa em um dia como esse.
Saiu do quarto, foi direto ao banho. Barbeou-se e só então percebeu como havia se descuidado. Havia quem dissesse que uma barba assim era típica de artistas, juntamente com a boina que ele sempre usava. Olhando-se no espelho e vendo aquele rosto renovado decidiu se livrar da boina também.
Direcionou-se à sua primeira missão tida como impossível: tomar o café da manhã.
Em vez do café puro, um copo generoso de café com leite. Em vez do cigarro, um pão fresquinho que sua mãe acabara de comprar. Sua mãe, aliás, estava surpresa. Há anos não via seu menino sentado à mesa, sobretudo a essa hora da manhã. Sentou-se com ele e começou uma conversa matinal, mas ele não respondia. Não gostava de falar pela manhã. Nem gostava de falar durante o resto do dia. Mas pela manhã lhe era mais difícil. Não era mau humor, como muitos dizem sentir. Era só uma necessidade de continuar isolado como ficara durante a noite. Esse sentimento de solidão lhe era muito valioso.
Percebendo a decepção de sua mãe pela tentativa frustrada de se reaproximar do filho, lembrou-se de que aquele era o primeiro dia do resto de sua vida. Lembrou-se que mudaria e, por fim, respondeu com simpatia às investidas da mãe. Sorriu-lhe e disse-lhe que não se preocupasse mais, pois aquele filho estranho estava tentando ser mais acessível. Disse-lhe também que a amava e que era grato por toda a preocupação e cuidado que recebera dela durante sua vida.
Ele comia devagar, não estava acostumado. E a conversa se estendeu por uns vinte minutos. Quando terminou, levantou-se, deu um beijo em sua mãe e saiu.
- Pra onde vai? - perguntou-lhe a mãe surpresa pela atitude do filho.
- Não sei. Só sei que vou. E volto. Não se preocupe.
Saiu pela porta da sala, desceu as escadas. Abriu o portão, pisou na calçada e, de costas pra rua, fechou o portão. Quando se virou e se deparou com a rua, olhou para frente, depois para os dois lados. Não pra ver se vinha algum carro que o impedisse de atravessá-la, mas porque não sabia pra onde ir. Tentou por alguns instantes pensar em algum lugar interessante, mas tinha pouco dinheiro e nenhum destino. Parecia que o mundo lhe era completamente desconhecido. Não sabia o que fazer e se sentiu perdido na frente de sua casa.
Por fim, resolveu ir a algum parque. Decidiu-se pela direita e deu três passos. E lembrou que não tinha ideia de como chegaria a parque algum. Abriu o portão novamente e voltou para seu quarto.
- Nossa, esse ritual e esse suspense todo só pra sair e comprar cigarros? – Disse a mãe, já decepcionada pela mudança ter durado tão pouco.
- Voltei só pra consultar o guia. Não sei como chegar ao Ibirapuera.
A mãe riu-se e explicou-lhe qual ônibus usaria.
- Aviso-lhe que não há árvores secas lá. Não nessa época do ano. É tudo muito verde e paisagem cinza que você costuma pintar e fotografar não será encontrada lá.
- Imagino, mas vou mesmo assim.
- Vai se encontrar com alguém?
- Não.
- Vai sozinho?
- Sim.
- Por que alguém resolve visitar um lugar tão bonito sozinho?
- Não sei, só sei que vou.
- Você precisa se mais criativo em suas respostas. Espero que encontre alguém interessante. Você precisa de amigos. Tem que sair de casa, ser mais sociável.
- Talvez eu tente a partir de hoje.
[...]

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Lá venho eu de novo com minhas indignações a respeito do ser humano.

Eu faço, abertamente, apologia ao egocentristmo. As pessoas têm de pensar em si próprias antes de tudo. E isso não tem nada a ver com o clichê "se você não se ama, ninguém mais vai amar", e sim com o fato de termos a consciência de que não podemos, de forma alguma, passarmos nossa vida toda tentando cuidar dos outros a despeito de nossas próprias vidas.
Acontece que se colocar em primeiro lugar não implica em falta de caráter. Estar no topo de sua lista de prioridades não quer dizer que você tem que atropelar aos outros. Ser egocêntrico, a meu ver, não é ser o centro de todas as atenções a qualquer custo. É ser o centro de sua atenção, somente.
Não espero que me elogiem, apesar de gostar dos elogios sinceros. Mas não vivo em função disso. Críticas, ouço a todas. Aceito as que concordo. Tenho facilidade em reconhecer meus erros. Só não aceito críticas dos que as fazem pra atingir, não pra ajudar. Não vou me render à pessoas cheias de si mesmas, cheias de preconceitos e prentensões infundados. 
Ter sua atenção sobre o seu ser o faz perceber suas falhas, julgá-las e aperfeiçoá-las se assim achar conveniente. Tem gente que gosta do que os outros pensam ser um defeito.
Eu, por exemplo, sou um tanto antissocial. Não trato ninguém mal, mas confesso que não gosto muito de multidões. Há quem diga que isso é errado, que devo me relacionar bem com todos. Eu penso que, assim, só me aproximo de quem vale a pena. 
De que adianta ter 'um milhão de amigos' se, quando você vira as costas noventa por cento desses 'amigos' se esquecem de você?
De que adianta se encher de orgulho ao dizer que você conhece todo mundo se, na verdade, essa relação com todo mundo é superficial?
Eu tenho amigos de anos, que não vejo nem tenho contato há anos.
Mas se os encontrar, certamente faremos uma festa.
Ontem mesmo encontrei uma amiga de escola, estudamos juntas a partir da 8ª série. Eu precisava voltar logo pra casa, mas esqueci da vida, porque relembramos dos nossos bons tempos de adolescência e marcamos de aprontar alguma um dia desses. 
Eu costumo ir sempre nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. Mas, se me der na telha que eu quero frequentar um outro ambiente, sem essas pessoas de sempre, é só pegar o telefone e escolher pra quem ligar.
E eu não conheço todo mundo. Pelo contrário. Tem apnas uns quinze números na minha agenda. Só que são pessoas que sei que estarão sempre ali.
Por que estou dizendo tudo isso???
Por que podemos escolher nossas companhias. E podemos escolher o tipo de relação que temos com elas.
E todos deviam ter consciência de que essa escolha é valiosa. 
Você pode escolher ter muitos conhecidos e ter relações superficiais. Pode também ter poucos amigos verdadeiros. Pode ter muitos amigos verdadeiros também, por que não? Depende da sua sociabilidade. Eu não tenho muita, confesso.
Mas o mais importante é que, seja qual for sua escolha, a pessoa, mais cedo ou mais tarde, saberá da sua intenção. 
Somos obrigados a conviver com certas pessoas, devido às circustâncias. Mas não somos obrigados a confiar nelas somente por causa de 'laços'.
Vire as costas pra quem você pode realmente contar, só pra bater no peito dizendo que você vem em primeiro lugar. Depois, vá pedir socorro a quem você está tentando esconder, pra ver no que dá.
Feche as portas. Sem problemas. A escolha é sua, você tem esse direito.
Só saiba que dignidade não se finge.