quinta-feira, 25 de março de 2010

Miguel (Sexta Parte)

Enquanto Rubia matava as saudades do amigo, Miguel voltava pra casa.
Andou um pouco pelo centro da cidade, procurando alguns lugares onde costumava ir quando adolescente. Tudo havia mudado, para pior. Perguntou-se o que fez esse tempo todo que não havia percebido tantas transformações: a biblioteca já não era mais embaixo do Fórum. Agora estava situada em uma sala no antigo shopping. A área verde, atrás da biblioteca, onde se reunia com os poucos amigos depois de fazer algum trabalho escolar também se extinguira. Sentiu saudade daquele tempo: uma turma de seis meninos e duas meninas. Sempre a turminha isolada da sala, olhada de soslaio pelos colegas e encarada com raiva pelos professores. Pareciam distantes, indiferentes. Conversavam o tempo todo entre si. No intervalo, se juntavam com uns mais velhos. Um deles era irmão de uma de suas amigas. Foi com eles que começou a ir a festas, a sair, a beber e a fumar. Era a turma marginalizada, da qual todos tinham medo. No fundo eram agradáveis e só não se misturavam porque achavam a maioria muito enfadonha. Gostavam de músicas e livros e conversas diferentes do que a maioria estava acostumada. Apesar de não serem bem vistos pelos professores, sempre tinham boas notas e faziam ótimos trabalhos.
A biblioteca não tinha copiadora. Tinha, mas não funcionava nunca. A turma se reunia para copiar os trabalhos. Passavam a manhã toda e o comecinho da tarde fazendo isso. Aninha se encarregava depois de editar e datilografar o material colhido. Elaine fazia as cópias e dividia as partes para mais tarde o grupo montar a apresentação. As duas se tornaram professoras. Ninguém imaginaria isso. Duas doidas, que viviam no meio dos meninos, falavam palavrão, jogam truco e faziam parte do time de futebol de salão da escola. Elaine era de uma beleza comum. Bem atirada, vivia trocando de namorado. Era atacante do time e fazia muitos gols. Jogava como homem, se comportava como homem e isso a tornava mais acessível. Ficou com muitos meninos na escola, ao contrário de Aninha.
Aninha jogava no gol, queria ser menino pra poder estudar no SENAI e as meninas tinham medo dela por causa da cara de brava. Só casca. Era doce e quem não a conhecia não tinha ideia disso. Não era masculina, ao contrário do que se pode pensar. Tinha os cabelos negros, compridos e usava sempre preto, mas eram roupas justas e curtas e tinha uma bunda maravilhosa. Era desejada, mas ninguém tinha coragem de chegar perto, por causa do irmão, um dos mais nervosos da turma. Miguel tinha uma paixão secreta por ela, mas tinha tanto medo quanto os outros. Ela parecia não perceber. Conversava com os meninos como se tivesse conversando com qualquer outra amiga. Falava o que pensava, discutia com convicção e não se importava com o que pensavam sobre ela. Essa indiferença a deixava ainda mais desejável, pelo menos para Miguel, que, ao se pensar nela, pensou também que talvez fosse a única de quem ele tivesse gostado. Até então. Lembrou-se de Rubia novamente. Por uns instantes tinha se esquecido do que acontecera naquela manhã. E lembrou-se, por fim, onde pretendia ir quando saiu. Mais uma vez, seus planos não se concretizaram. Mais uma vez deixara de fazer o que imaginara. Sempre era assim: se decidia, mas não cumpria. Nenhum plano, nenhuma meta. Nada era concluído. Nem um simples passeio em um parque qualquer.
Ao menos não tinha colocado um cigarro sequer na boca naquele dia. Sentia-se nervoso, inquieto, mas não sabia o porquê. Só percebeu quando chegou a casa e viu seu cinzeiro ainda com algumas pontas de cigarro da noite anterior.
Sentiu uma vontade imensa de acender um deles, pra conseguir pensar com calma no que acontecera. Pela primeira vez em muito tempo Miguel se sentira animado. Tinha a imagem de Rubia no pensamento, sentada no trem com seu livro. Queria retratá-la e prendê-la naquela tela como forma de tê-la eternamente. Vermelho, verde, laranja, branco. Finalmente as cores teriam vida. Miguel tinha alma, por fim.
Em vez de acender o cigarro, pegou uma tela, tintas e pincéis e se pôs a trabalhar. Ia começar pelo vermelho, obviamente, mas preferiu deixá-lo para os retoques finais. Era especial e seria tratado com cuidado. Fez o esboço de um corpo feminino. A imagem de Rubia sentada à sua frente não lhe saia da cabeça, porém, não era isso que saia do seu pincel. Queria imortalizá-la daquela maneira, com a luz e os pés cruzados e a saia... Mas só conseguia pensar nela longe dali. Só pensava nela sem mais nada em volta de seu corpo. Só ela, à noite, azul. Rubia azulada, sob a luz da lua. Ela, a lua e mais nada.

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