quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Miguel (Segunda Parte)

Miguel era bonito. Muito bonito. Alto, cabelos pretos, lisos e cheios, de uma pele extremamente alva. Um rosto de menino e um olhar louco. Seus braços eram fortes, mas tinha uma força suave. Sem a barba seu queixo delicado ficava à mostra e aquele furinho que todas gostam estava em evidência. A caminho do centro da cidade ele percebeu olhares, muitos olhares. E percebeu também que passara a vida sem olhar para os lados. Sempre cabisbaixo, nunca se prendeu por mais de alguns instantes em alguém que tivera por ele passado.

Chegando à estação de trem, notou um grupo de garotas conversando. Falavam e riam alto, gesticulavam e faziam com que os passantes as percebessem a qualquer custo. As mulheres olhavam estranhamente – algumas com desprezo, outras, despeito. Os homens fixavam os olhos e alguns até se viravam para continuar olhando. Todas bonitas, novas, cheias de vitalidade. E todas com roupas curtas, justas, vulgares – segundo alguns olhares femininos. Deliciosas, de acordo com os masculinos.
Na fila para comprar o bilhete ele percebeu que elas o olhavam. Duas comentaram algo em voz baixa e umas delas sorriu para ele. Era muito atraente: loira, cabelos compridos e um corpo perfeito. Sentiu-se atraído por ela, e retribuiu o sorriso. As outras perceberam e reiniciaram o seu escandaloso comportamento, que tinha cessado por alguns instantes.
Baixou novamente a cabeça, passou a catraca e seguiu para a plataforma. As garotas logo ali estavam também e a loira linda não tirava os olhos dele e não parava de cochichar com a amiga. Miguel passou a se sentir incomodado. Era uma situação constrangedora. Elas não disfarçavam e a loira praticamente rebolava em plena plataforma. Jogava os cabelos, mordia os lábios. Ele achou engraçada a forma como a menina se insinuava. Parecia mais que queria mostrar para as amigas que conseguia chamar sua atenção do que propriamente pretendia isso. Ele riu, mas não pra ela dessa vez. Pensou que passara muito tempo trancafiado em seu quarto e tinha perdido o jeito. Aliás, não se lembrava de já ter tido jeito pra isso. As garotas com quem tinha tido algo eram da escola, ou conhecidas. Sempre rolava em alguma festa ou reunião com os amigos. Tudo muito superficial. Não se lembrava de ter tido que convencer alguma mulher a ficar com ele. Acontecia, simplesmente. Mas sempre tinha alguma conversa, no mínimo, interessante antes. Nunca aconteceu de sair e ter de conhecer alguém. Sexo casual com uma desconhecida. Beijo com uma desconhecida. Não. Não se lembrava de ter feito isso.
Acabou se dispersando. Esqueceu da loira, esqueceu de onde estava e se perguntava quando ia aparecer alguém que realmente interessasse a ponto de fazê-lo trocar as pinturas de cores acinzentadas pelas avermelhadas, alaranjadas. Quando sentiria o ímpeto de trocar as árvores secas por crepúsculos e silhuetas na praia.
“Nossa, que pensamento mais brega. Vou acabar ilustrando cartões. Será que ainda existem esses cartões?”
Sem perceber, Miguel sorria novamente. De cabeça baixa, pensando na besteira que acabara de imaginar. O trem estacionou na plataforma e ele passou pela porta ainda sorrindo, quando ouviu alguém dizer “Ele é tímido! Que fofo!”.
Tímido. Era disperso, antissocial. Logo perdera o interesse pela moça que quase se jogava nele, apesar daqueles seios incríveis. Muito barulho por nada pensou ele.
Sentou-se em um banco na janela, e procurou nos bolsos seu mp3. Havia esquecido e imaginou como conseguiria seguir quase por uma hora ouvindo aquelas garotas cacarejando o caminho todo. Lembrou-se de ter dito pra mãe que tentaria ser simpático, mas simpatia tinha limite. Se pudesse fazê-las calar somente com um olhar... E lá estava ele olhando novamente para a loira. Desviou e olhou para a janela, vendo a paisagem começar a correr diante de seus olhos e lembrou-se da amiga que dizia que a lei da inércia era a única coisa sobre física que ela se lembrava. E seguia. Nada melhor do que atender à tendência que um corpo tem de permanecer em um lugar. Ela era engraçada, soltava umas frases sarcásticas quando menos se esperava. Ele era um dos poucos que riam sempre, um dos poucos que a entendiam.
Ouviu algum chiado, quando pensava na amiga e se deu conta de que alguém sentado à sua frente não tinha se esquecido de vir acompanhado de música. Alguém ali tinha a sorte de não ouvir toda aquela gritaria daquela turma de meninas. Tentou reconhecer a música, em vão. Olhou para baixo e viu dois pés afastados e dois joelhos juntos. Uma saia que começava verde e ia passando por um dégradé até ficar bege. Os joelhos à mostra e um pouquinho mais acima. Pouco o suficiente para fazê-lo imaginar a saia subindo e revelando suas coxas, que apoiavam um livro também não reconhecido, como a música que ela ouvia. Subindo um pouco mais o olhar, viu a camiseta regata branca e os seios pequenos. Estava longe de ter os seios da loira, mas que colo! Dali via que era macio e sentiu vontade de tocá-lo. Sua boca era suculenta e seus olhos interessados. Interessados no que estava lendo, não nele. Mexeu-se, pigarreou, tossiu. E os olhos não se levantaram. Continuaram fixos na leitura. A luz do sol entrou pela janela e ele descobriu ali o vermelho que imaginava retratar. Era o vermelho perfeito, preso naqueles cabelos.
Alguém se sentou ao seu lado e lhe pediu permissão para lhe fazer uma pergunta. Sem se desviar do vermelho, respondeu que sim.
- Posso saber em que você está pensando? Deixou de prestar atenção em mim e gostaria de saber o que se passa nessa sua cabeça - disse a loira, quase esquecida.
- Não, eu não me incomodo – respondeu Miguel.
- Ahnn? Não se incomoda com o que?
- Não me incomodo em responder à sua pergunta.
- Mas eu não perguntei se se incomodava. Só fiz a pergunta.
- Claro que não! Não me perguntou se eu me incomodaria por sentar-se ao meu lado, nem perguntou se eu me incomodaria em responder algo a uma desconhecida. Só perguntou, sem nem saber quem eu sou, o que tinha aqui dentro – disse Miguel, apontado para a própria cabeça. E eu repondo: há cores aqui dentro. Sobretudo o vermelho. Sobretudo, ainda, as nuances do vermelho com a luz do sol, sem a luz do sol. Fico imaginando como seria esse vermelho à meia luz, ou à luz de velas. Ou como seria esse vermelho acompanhado de umas taças de vinhos e uma boa música. O vermelho sem o bege nem o verde, nem o branco.
A leitora à sua frente nem se mexeu, mas levantou o olhar, finalmente. Olhou-o meio de lado, esboçou um sorriso de quem tinha entendido o que ele dizia e voltou ao seu livro.
- Respondida a sua pergunta? – Voltou-se Miguel para a moça do lado.
- Não como eu queria. Mas pelo menos agora sei que não deixou de olhar pra mim por estar pensando em outra. Ficaria com ciúmes se fosse isso.
Então ela riu. Sem som, mas riu. Por algum motivo havia tirado seus fones e ouviu a conversa. E não pode se conter quando ouviu o final dela. Miguel esqueceu-se novamente da loira e voltou a olhar pra frente, esperando que ela o encarasse, mas não aconteceu. Ela olhava pela janela, como se estivesse alheia a ele e ele sabia que não estava. Ainda havia uma pontinha do seu divertimento pela estupidez da outra estampada no canto se sua boca. O celular dela tocou e o sorriso desvaneceu. Miguel tentou ouvir a conversa sem ser notado. Ela disse em qual estação desceria e para onde ia. Combinou com a outra pessoa de se encontrarem em um bar numa avenida conhecida. Ele pensou em segui-la, mas logo desistiu da ideia. E se esqueceu pra onde estava indo.
O trem parou na estação final e ela se levantou. Ele continuou ali sentado, sem pressa, olhando as pessoas descerem. Quando se levantou, percebeu algo deixado no banco. Era o livro. Ela o havia esquecido. Ele o recolheu e saiu apressado atrás dela, mas ela já tinha sumido. Ficou parado, na plataforma da estação, pensando em como devolver e se lembrou de onde ela estaria.
[...]

10 comentários:

Renata disse...

A história é muito boa! Cativante!

Sophia disse...

Muito obrigada.

Ivan Ryuji disse...

Olá,
valeu pela visita, volte sempre!

Muito bom seu texto! Muito bem construido... =)
Chamou atenção mesmo.
Parabens... =)

Bjos

Ivan Ryuji
http://blogdoryuji.blogspot.com/

Sophia disse...

Obrigada, moço. Não achei no seu blog espaço pra segui-lo...
Bjk

josue mendonca disse...

obrigado pela visita.
gostei da estética de seu blog e percebo que vc tem algum dom literário.
volte quando quiser
outra hora, quando tiver um pouco mais de tempo, passo aqui pra ler com mais calma
abraço

Juan Moravagine Carneiro disse...

Continue....!

beijos

Juan Moravagine Carneiro disse...

Continue....!

beijos

Juan Moravagine Carneiro disse...

Aliás eu imprimi este fragmento para poder ler com mais cama depois e comentar de verdade...rsrs..Gostei muito da nova cara do seu blog...Parabéns!

até

Sophia disse...

Juan
Que bom!
Fico feliz sabendo que está gostando. Sua opinião é importante pra mim. Sempre.

Unknown disse...

Ta legal, parabéns, poderia escrever um livro. Leva jeito para isso.